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Prostituição infantil desestabiliza sociedade

28/03/2016 08:05
Prostituição infantil desestabiliza sociedade

A Prostituição infantil é um fenómeno social complexo que representa um desafio para o país.

Nalguns casos as crianças envolvidas são “empurradas” por gente adulta, incluindo os próprios pais, animados com a possibilidade de obter rendimentos monetários para o sustento das famílias.

A leitura é da Ministra do Género, Criança e Acção Social, Cidália Chaúque, falando há dias em entrevista ao “Notícias”, na qual denuncia o facto de algumas raparigas serem sujeitas a violência e humilhações e, apesar da assistência psicossocial que recebem nos casos em que as redes promotoras são desmanteladas, dificilmente recuperam dos traumas sofridos. Na conversa, cujos excertos significativos passamos a transcrever, Cidália Chaúque fala também do crónico problema de crianças da/ou na rua, que evoluiu para cenários de famílias inteiras na rua, e associa-o à perda de valores morais. Chama ainda atenção à sociedade para que valorize o idoso e a pessoa portadora de deficiência, sem esquecer de priorizar os menores devido à sua condição de vulneráveis.

NOTÍCIAS (NOT) –Sr.ª ministra, recentemente foram aprovadas as estratégias nacionais de prevenção e combate aos casamentos prematuros e a de segurança social básica, ambas com horizonte temporal 2016-2019. Que importância têm estes instrumentos?

Cidália Chaúque (CC) - São instrumentos muito importantes. Começando pela Estratégia Nacional de Segurança Social Básica, diríamos que se trata de uma segunda fase. Tivemos a primeira, que contemplou o período 2010/14. No fim sentimos que precisávamos de uma segunda, porque a primeira trouxe grandes avanços, concretamente no aumento do número de beneficiários. Quando terminámos tínhamos cerca de 427 mil utentes, o que representa uma subida em 68 por cento, comparando com 2010. Serviu muito para assistência de idosos e pessoas numa situação de vulnerabilidade. Esperamos que nesta tenhamos mais famílias a beneficiarem-se dos vários programas existentes. A estratégia contra casamentos prematuros ganha sua importância na medida em que o nosso país é um dos que tem maiores índices deste fenómeno em raparigas com menos de 18 anos. Achamos que os casamentos prematuros não só trazem problemas de pobreza como também de desnutrição, porque as crianças geradas nestas uniões não crescem em condições condignas e estão expostas também a doenças porque as mães ainda não estão preparadas para estes casamentos.

NOT -Do ponto de vista de números o que realmente querem atingir?

CC - Em 2010 tínhamos 254 mil beneficiários de Acção Social Básica, no final estávamos com 427 mil. A assistência era garantida com 0.22 por cento do Orçamento do Estado. Agora passámos para 0.58 por cento, o que é muito bom e estamos a cobrir cerca de 500 mil famílias. Na nova assistência pensamos que até 2019, ano da avaliação de meio-termo – a estratégia é na verdade de 2016 à 2024 – atingiremos perto de 980 mil beneficiários nos diversos programas. A meta final é abranger três milhões de moçambicanos carentes até 2024.

NOT -E em relação aos casamentos prematuros?

CC - Nos casamentos prematuros hoje temos 48 por cento de raparigas a se casarem com menos de 18 anos e achamos um nível muito alto. Queremos, através da estratégia, reduzir esta cifra. Acreditamos que com as várias acções em curso no país e com a legislação que está sendo adoptada conseguiremos ter as famílias sensibilizadas contra o fenómeno. Fora o facto destas crianças não estarem ainda em idade para casamento, notamos que são submetidas a violência doméstica. Um dos instrumentos criados pelo Governo para lutar contra a situação é o Mecanismo de Atendimento Integrado para reduzir o nível de violência baseada no género. Acreditamos que tende a reduzir. A comunidade já percebe que isto é um mal e começámos a ter muitas denúncias e assistência. De ano para ano o número de vítimas de violência está a baixar.

NOT -Que passos estão ou deverão ser dados para que as acções preconizadas nestes documentos se materializem? 

CC - Precisamos de fazer muita divulgação. As estratégias precisam de ser levadas junto das comunidades e estas devem se sentir envolvidas na implementação. As famílias precisam de sensibilização para participarem na estratégia. Acima de tudo, contamos com os nossos parceiros que trabalham na área da criança e do género. Temos de trabalhar com os diversos segmentos no sentido de termos maior abrangência no interesse de combater os casamentos prematuros. Há que ter espaço nas escolas para que a rapariga continue na escola e não desista. É preciso sensibilizar as famílias para que façam o seu trabalho e a rapariga continue o seu nível escolar. Temos programa com o Ministério do Trabalho, Emprego e Segurança Social de modo que a rapariga tenha prioridade nos cursos profissionais e saiba fazer. Desta forma poderemos baixar os casamentos prematuros.

NOT -  E quanto à assistência social?

CC - Quanto à assistência social básica precisamos de fazer maior rastreio nas comunidades para conseguirmos atingir de facto as pessoas necessitadas e garantir que estas sejam cobertas pelos nossos subsídios. Estamos neste momento em fase de reestruturação dos programas e cadastro dos beneficiários para que tenhamos efectivamente os beneficiários necessitados. Vamos terciarizar os pagamentos dos subsídios, o que é muito importante. Agora o pagamento é manual e é muito arriscado porque os técnicos têm de levar em mão avultadas somas e às vezes são assaltados, o que priva os beneficiários dos seus subsídios em devido momento.

NOT -Quando é que esperam terminar estes processos?

CC - São vários programas. Para o caso do Programa de Apoio Social Básico esperamos terminar o cadastro dentro de dois ou três meses. Começaremos com um pagamento alternativo ainda não terciarizado, mas pouco depois teremos isto. 

NOT -Os pais têm um papel importante nos casamentos prematuros. Como é que está a ser articulada a comunicação com a família para o fim deste fenómeno? 

CC - O maior problema que existe no seio das famílias é o nível alto de pobreza. Muitas acham que a partir do momento em que há uma rapariga em casa é um meio de angariação de recursos. O nosso trabalho é de sensibilização, no sentido de não olharem para a rapariga como uma mercadoria, como material para angariação de recursos mas como alguém que tem futuro. Fazemos o nosso trabalho a todos os níveis, incluído com a própria rapariga. Lutamos para que esta perceba que ganha muito estando na escola. Se ela perceber isto dificilmente aceita abandonar os estudos para se juntar a um homem antes da hora. Trabalhamos com as igrejas devido ao seu papel fundamental na devolução dos valores morais nas comunidades. Em algumas famílias quando se perde uma esposa cede-se uma outra mulher mais nova para manter o genro. Estes hábitos culturais têm os seus problemas. Assumimos que a família é muito importante para a redução dos casamentos prematuros. Temos muitas raparigas que são chefes de família. Procuramos lares alternativos para ampará-las antes que elas sejam entregues a homens para se casarem mesmo crianças.

ZONAS RURAIS PROPENSAS AO TRÁFICO DE MENORES

A PROSTITUIÇÃO não é um fenómeno novo. Entretanto, os grandes centros urbanos debatem-se, neste momento, com problemas de prostituição infantil. O “Notícias” quis saber como é que o MGCAS olha para este fenómeno e que acções existem visando o seu controlo? 

CC - Olhamos para este fenómeno com muita preocupação. Esta não tem a ver com o fenómeno em si porque, como disse não é novo, mas quando envolve crianças merece atenção redobrada. Dizíamos que um dos maiores problemas é o elevado nível de pobreza das famílias. Em alguns casos são crianças que são prometidas valores monetários e por causa da sua situação de pobreza as famílias tendem a aceitar. Temos feito trabalho com as comunidades no sentido de não participarem destas acções. Trabalhamos também com as próprias crianças, porque nalgum momento são submetidas a violência e depois temos que prestar assistência psicossocial quando são identificadas. Notamos que depois deste tipo de violência elas dificilmente se encontram consigo próprias. É um dilema muito grande voltar a inserir esta criança na família e/ou na comunidade. Partimos destes exemplos para fazer perceber as outras famílias que este não é o melhor caminho. Como país aderimos a vários programas que existem no continente, quer de redução da prostituição infantil, tendo em conta o tráfico de crianças. Mas internamente também temos feito muito para explicar que a prostituição infantil é um mal muito grande.

NOT -Há estatísticas ou um mapeamento das cidades ou pontos do país onde a situação é crítica?

CC - Não temos áreas que sejam críticas. Podemos, sim, dizer que as áreas urbanas são as mais propensas ao fenómeno. Na área rural é onde encontramos mais crianças facilmente traficadas com pretexto de que vão trabalhar como babás ou empregadas domésticas. Já desactivámos muitos esquemas, incluindo supostas agências de recrutamento de babás, porque legalmente não existem. Trabalhamos com as autoridades policiais para controlar estes focos, que tendem a crescer.

NOT -Falou-se nalgum momento do fenómeno crianças na rua ou da rua. Hoje temos famílias. Como é que o Governo está a enfrentar este outro fenómeno social?

CC - Falamos de criança na rua e da rua e da situação de mendicidade. Lutamos para ultrapassar este fenómeno. Sempre tendo como base a família, procuramos integrar as crianças. Temos centros de acolhimento, onde assistimos os menores. Mas também temos idosos e também famílias nos diversos programas. Em alguns casos conseguimos resolver a situação. Todos eles fazem parte de uma comunidade e quem puder apoia através do centro, onde estão amparados e não expostos a humilhações e a acidentes de viação. Uns acham que os valores, o apoio, não são suficientes, e optam por abandonar o centro para a rua. Isto está aliado à degradação dos valores morais. Falando concretamente da cidade, praticamente todos que estão na rua fazem parte dos nossos programas. Temos feito campanhas para a retirada destas pessoas para centros de acolhimento. Alguns acabam ficando, mas outros retornam às ruas por acharem não ser o melhor sítio para elas. Apelamos a todas as forças vivas da sociedade para que não prestem apoio na rua porque lhes motiva a ficar lá. Acreditamos que se não receberem assistência na via pública, tal como ocorre em algumas províncias, podem permanecer nos centros.

NOT -Só que na cidade de Maputo, por exemplo, há lojistas que preferem assistir directamente as pessoas na rua. Que articulação existe com estes vossos parceiros?

CC -É de facto um constrangimento. Algumas comunidades fazem chegar os seus apoios aos centros e entregam directamente. Mas alguns grupos insistem em fazê-lo na entrada da sua loja. Continuamos a conversar com estes parceiros para que se dirijam aos centros e entreguem pessoalmente lá no local. É por isso que às vezes aqui na cidade de Maputo os índices baixaram porque alguns já acataram o apelo. Infelizmente temos os que não podem sair da loja por várias razões, pelo que continuamos a assistir filas. Isto traz problemas. Há idosos que são atropelados e perdem a vida, passam por humilhações por parte das crianças. Em algumas províncias já superámos isso. Temos grupos de apoiantes que canalizam a sus ajuda duas vezes ao mês, outros todas as sextas-feiras.

NOT - Mas do vosso ponto de vista o que leva uma criança a abandonar a casa dos pais e/ou parentes para viver na rua, com todos os perigos existentes?

CC - Do trabalho que temos feito constatámos que a violência e os maus tratos protagonizados pelos mais velhos são dos catalisadores para que as crianças abandonem os lares. Elas são muito sensíveis, quando violentadas pelos seus pais e/ou membros das suas famílias optam por ir à rua, achando que lá não passarão por essas situações. Mas esta torna-se uma criança que cresce com muitos problemas. Ao crescer sem nenhum seguimento ela torna-se um perigo na estrada. Pode virar carteirista, violadora ou demente,  derivado da falta de acompanhamento. Regra geral, retornamos estas pessoas às famílias. Tentamos a primeira vez, a segunda e a terceira, mas se concluímos que é impossível ela voltar a viver com os seus, enviamo-la a um centro de acolhimento. Algumas têm uma inserção rápida. Outras devido à violência das ruas demoram, mas procuramos inseri-las.

NOT -Há alguns números?

CC - Actualmente estamos a assistir cerca de 42.2 mil crianças em 213 centros no país. Quanto aos idosos, contamos com quase cinco mil beneficiários acolhidos em 22 unidades destinadas a esse efeito. Temos centros fechados, onde se faz uma assistência completa. De realçar que há casos tristes de idosos que são escorraçados pelos filhos ou outros familiares por acusação de feitiçaria, mas já nos centros vivem pacificamente com os demais, sem que alguém se queixe de ter sido enfeitiçado por eles. Isto é complicado. As idosas é que sofrem mais com este tipo de casos. A convivência é muito boa e até formam famílias através de casamentos. Um dos últimos exemplos é de Gaza, em que dois idosos, ela de 80 anos, apaixonaram-se, mas não queriam partilhar a casa antes de se casarem. Tivemos de organizar a cerimónia de casamento e hoje estão lá, felizes.

NOT -Além de se acolher os idosos acusados de feitiçaria haverá acções no sentido de reverter este fenómeno nas famílias?

CC - Existe. Trabalhamos com jovens no sentido de lhes consciencializar que o facto de alguém ser idoso não significa que é feiticeiro/a. Elucidamos-lhes que eles também estão a crescer e se a atitude continuar eles também correm o mesmo risco. Se o pai ou a mãe fosse feiticeiro/a podia muito bem ter-lhes enfeitiçado ainda crianças. Encorajamos as famílias para que junte os filhos e os avós para que não haja um vazio entre eles. A família é importante para preservação dos laços entre crianças, jovens e idosos.

NOT -Olhando para o país, como se distribui a marginalização do idoso? 

CC -De forma geral, a região sul tem mais idosos em situação de vulnerabilidade. Temos os que são assistidos pelos filhos e os que não têm quem lhes possa cuidar.

NOT -E quanto a outros fenómenos, como casamentos prematuros?

CC - Quanto a casamentos prematuros temos mais no norte, falando concretamente de Nampula e Cabo Delgado.

POBREZA FEMININA PERPETUA VIOLÊNCIA

A DADO passo da entrevista com Cidália Chaúque quisemos saber em que ponto do país se registam mais casos de violência baseada no género e como perspectivam estancar este mal, tendo ela nos dito que...

CC - Temos estado a observar um novo fenómeno, em que há também homens que são vítimas de violência. Para podermos atender a estes casos criou-se o Mecanismo de Atendimento Integrado, onde as vítimas encontram todos os organismos num mesmo lugar, para evitar que a esta pessoa seja sujeita a vários movimentos. Encontra no mesmo espaço o médico, o advogado, o polícia, entre outros, para fazerem o acompanhamento. Estamos satisfeitos porque há já muita divulgação. No passado as vítimas não denunciavam. A mulher, por ser submissa, sofre maus tratos mas teme que se o marido for preso ela ficará sem sustento e os filhos passarão fome. Temos também casos em que ela após a denúncia sofre pressão dos familiares do esposo agressor no sentido de retirar a queixa. Felizmente há já denúncias até por parte dos familiares do marido. Não que queiramos ver os maridos em situações complicadas, mas o que defendemos são penas exemplares para casos de violência.

NOT -Há metas concretas?

CC - Não temos metas porque não é possível prever quantas violações teremos a cada dia. O que podemos dizer é que no ano passado foram assistidas 1656 mulheres vítimas de violência e notámos redução em relação a 2014. Quando começámos a fazer a avaliação tínhamos cerca de dois mil casos, um número que já nos satisfazia, porque já havia denúncias. Dentro deste cenário notamos que onde há punições exemplares o casos reduzem. O cumprimento das penas tem criado condições para que se note mudança de atitude nas pessoas. Não somos muito a favor das retiradas das queixas porque a mulher dias depois volta a sofrer abusos do marido que foi pedir que fosse solto devido à pressão da família ou mesmo dos filhos. Nos casos em que há sanções não assistimos reincidência. O nosso objectivo não é desfazer a família, mas defendemos a aplicação de medidas correctivas.

NOT -Até que ponto o facto de o agressor ser o gerador da renda e sustento da família interfere na aplicação da lei que visa eliminar o mal?

CC - Interfere em grande medida. As mulheres têm medo de denunciar o esposo agressor porque é ele que traz comida para casa. É por isso que o nosso esforço é criar condições para o empoderamento económico da mulher. Acreditamos que enquanto esta mulher for economicamente dependente será refém de todos os problemas que existirem na família. Se houver capacidade económica dos dois em algum momento reduz o nível de dependência. Não aumentamos o desrespeito familiar, mas estabelece-se uma cumplicidade entre o casal. Se o marido for recolhido às celas por violência contra a esposa, esta, tendo uma mínima capacidade económica, é capaz de ficar a cuidar das crianças enquanto o marido estiver na correcção.

Fonte: Jornal Notícia